Campo
de Aplicação
As guerras do
século dezenove e da primeira metade
do século vinte deram origem a
demasiadas hipóteses de aplicação, de jure
e de facto, das Convenções humanitárias existentes
na altura. Com efeito, na época em
que o jus ad bellum admitia
a licitude do recurso à força, era
necessário um acto formal dos
Estados para que fosse desencadeada a
aplicação do jus in bello, consistindo este acto numa declaração de
guerra ou num reconhecimento de belige-rância.
No entanto, a
declaração de guerra corresponde à
«cortesia» de uma época finda.
Assim, a partir de 1949 o DIH aplica--se de
jure e automaticamente desde o
surgimento de uma situação de fato
que se enquadre na definição do
respectivo campo de aplicação .
É bastante
surpreendente por uma lado que a
noção de conflito armado não seja especificada pelo
direito que o regulamenta e que por
outro lado este ramo do direito tenha aplicação
fora de situações de conflito armado. Convém examinarseis
casos-tipo:
1.CONFLITO ARMADO
INTERNACIONAL
Trata-se da
hipótese de uma guerra declarada ou de qualquer outro conflito
que surja entre duas ou mais Altas Partes Contratantes, mesmo que o estado de guerra não seja reconhecido
por uma das partes ou seja contestado
por todas as partes.
Qualquer
diferendo entre Estados que conduza à intervenção de forças militares é assim um conflito armado,
independentemente da duração do
confronto, do número dos efetivos, da extensão e da intensidade
dos conflitos. A velha noção jurídica de guerra foi
substituída por uma noção mais
lata, que se limita a qualificar o diferendo no
plano do Direito Humanitário, devendo este ser aplicável «desde
o primeiro tiro de espingarda» e mesmo
quando não haja qualquer resistência
militar, como no caso de ocupação.
Existe um
conflito armado internacional e são aplicadas as regras apropriadas
nas seguintes hipóteses: conflito opondo directamente dois
ou mais Estados; guerra de libertação nacional; conflito armado interno que se torna internacional pelo
facto de ter sido objecto de um
reconhecimento de beligerância, de se ter registado uma
inter-venção de um ou mais Estados
ou de ter havido uma acção coercitiva das
Nações Unidas com base no artigo 42. o da Carta.
2.GUERRA DE
LIBERTAÇÃO NACIONAL
Nos termos do
artigo 1. o , n.o 4, do primeiro Protocolo Adicional, as guerras
de libertação nacional são conflitos armados internacionais.
Somente
certos conflitos obedecem à qualificação de GLN, já que estas consistem em lutas armadas contra o domínio
colonial (Saara Ocidental, Timor,
Tibete?), a ocupação estrangeira (problema palestiniano, Curdistão,
Líbano?) ou os regimes racistas. Não é exigido nenhum nível
de intensidade à luta de libertação como condição para a
aplicação das regras pertinentes.
Os únicos requisitos exigidos são a existência de um movimento
de libertação nacional suficientemente organizado,
Direito
Internacional umanitário
estruturado e
representativo do povo em nome do qual está a
ser conduzida a guerra e a obrigação de o movimento de
libertação nacional subscrever o
mecanismo de adesão especial previsto no
artigo 96. o , n.o 3, do primeiro Protocolo.
A
assimilação das GLN aos conflitos internacionais, que consiste numa consequência do direito à
autodeterminação dos povos colonizados ou
do ressurgimento do conceito de guerra justa, foi ferozmente discutida no plano do
jus
ad bellum e da legitimidade das causas prosseguidas pelos beligerantes,
sendo actualmente o interesse prático
de uma tal assimilação mais limitado.
3.CONFLITO
INTERNO INTERNACIONALIZADO
Trata-se de
um conflito inicialmente interno que adquire progressivamente,
na sequência de intervenções estrangeiras (desde o
apoio financeiro e logístico até à intervenção militar), as
características de um conflito
armado internacional. As diversas hipóteses de
conflitos internos internacionalizados estão em constante
desenvolvimento, podendo-se indicar a
título de exemplo as guerras por procuração,
as guerras latentes, as guerras civis internacionalizadas ou
os conflitos mistos (Vietname, Angola, Iémen, Afeganistão, Chade, Campuchea, Niacarágua e ex-Zaire)
que permanecem ignorados pelo Direito
Humanitário convencional. Devem ser consideradas duas
questões: a de saber em que casos é que estamos perante um
conflito interno internacionalizado e a de determinar quais as regras aplicáveis.
Um conflito
interno internacionaliza-se a partir do momento em que um
Estado terceiro intervém, permitindo que os seus agentes
participem nas hostilidades. Desde a
decisão do TIJ no caso das atividades militares
na Nicarágua (27 de Junho de 1986), o nível de intervenção
exigido para a internacionalização do conflito é pouco elevado,
sendo suficiente o envio de fundos, equipamentos ou conselheiros para operar a internacionalização do
conflito. Para o Tri.bunal, os agentes do Estado interveniente
devem, não só respeitar o Direito
Humanitário, como também fazer com que ele seja respeitado 2 pelas forças às quais estão a prestar
assistência, na medida das suas
capacidades Num C.I.I. verifica-se
uma aplicação diferenciada do DIH, consoante o
estatuto jurídico dos beligerantes. O fraccionamento jurídico do conflito, admitido pelo TIJ na decisão
acima mencionada, consiste numa
solução que tem seguramente o inconveniente da complexidade e da desigualdade, mas que oferece a maior
protecção possível e é
politicamente aceitável 3 pelos Estados soberanos. É assim aplicado o direito dos conflitos armados
internacionais entre as partes
estaduais (entre os Estados Unidos e a Nicarágua) e o direito dos conflitos internos entre as partes
estadual e insurrecta (entre o governo
de Manágua e os «contras»).
de Aplicação 45
4.CONFLITO ARMADO
NÃO INTERNACIONAL
A
multiplicação de conflitos armados não internacionais durante a
segunda metade do século vinte deve-se
simultaneamente ao bloqueio estratégico
induzido pela dissuasão nuclear e à expansão sem precedentes dos impulsos comunitários no seio dos
Estados multinacionais, que se
tornaram assim vítimas de fragmentação, conflitos de
identidade e guerras civis. Este potencial de fragmentação ainda
é atualmente considerável, quando sabemos
que existem mais de 3000 povos em
menos de 200 Estados.
O DIH
classifica estes conflitos como
intra-estaduais subdividindo-os em duas categorias, consoante
o seu grau de intensidade.
De acordo com
o artigo 3.o comum
Este preceito
constitui um progresso consi-derável, já
que permite a protecção da pessoa pelo direito internacional no
seu ordena-mento interno, devendo o
Estado respeitar um mínimo
humanitário em relação aos seus
46 Direito
Internacional umanitário
2 Vide artigo 1.o
comum.
3 Turpin
(D.):«Les conflits armés de
caractère non international », Annales
de la Faculté de Droit de
Clermont-Ferrand,987, p.140
(em português:«Os conflitos armados
de carácter não
internacional »)
..nacionais
que se rebelaram contra a sua autoridade através do recurso
às armas. A grande força do artigo 3. o comum reside na
ausência de uma definição
restritiva do seu campo de aplicação, já que estamos unicamente
em presença de uma definição pela negativa dos conflitos
armados «que não apresentam» um carácter internacional.De
acordo com o artigo 3. o , o CANI tem condições de
aplicabilidade menos exigentes que o
Protocolo II, mas que não contemplam as sim-ples tensões
ou distúrbios internos, já que a parte rebelde deve pos-suir um mínimo de organização e de forças
armadas e as relações conflituosas
entre as partes devem atingir um nível de hostilidades abertas e
colectivas.
De acordo com o
Protocolo II
O artigo 1. o
define o campo de aplicação material do CANI que opõe as
forças armadas de uma Parte contratante às forças dissidentes, devendo estas, por um lado estar colocadas
sob um comando res-ponsável e, por
outro exercer um controlo sobre uma parte do ter-ritório que
lhes permita conduzir operações militares continuadas e
concertadas e aplicar o presente Protocolo (nomeadamente em
maté-ria de prisioneiros de guerra,
de cuidados e tratamentos aos feridos e
doentes). As condições de aplicabilidade do Protocolo são mais
exi-gentes que as de aplicação das
Convenções e, se é verdade que o artigo
3. o comum se aplica obrigatoriamente a qualquer situação
pre-vista pelo Protocolo II, o
contrário já não é certo. Enquanto que o con-flito armado
internacional é qualificado de forma extremamente lata, o
CANI, nos termos do Protocolo II, é espartilhado numa definição
muito restritiva à qual só parece
corresponder a guerra civil clássica 4 . Independentemente
do tipo de CANI em questão, a oponibilidade do
direito aos rebeldes não necessita de um acto formal de
aceita-ção sendo que, na prática,
estes últimos têm tendência a declarar publicamente
a sua intenção de aplicar o DIH, frequentemente por-que vêem
nesta declaração um meio de obter uma
certa legitimidade internacional. A parte
Campo de
Aplicação 47
4 Guerra de
secessão,guerra civil espanhola
e conflito da Eritreia
..estadual,
por seu lado, encontra-se vinculada aos seus compromis-sos internacionais
e não deve contestar a aplicabilidade do direito por
ter receio de assim legitimar os rebeldes. Finalmente o artigo 3.
o determina que a sua aplicação
não tem qualquer efeito em relação ao
estatuto jurídico das partes no conflito.
5.TENSÕES E
DISTÚRBIOS INTERNOS
O artigo 1. o
, n.o 2, do segundo Protocolo exclui da sua protecção as situações
de tensões e distúrbios internos, tais como os motins, os actos isolados e esporádicos de violência
e outros actos análogos não considerados
como conflitos armados. Trata-se por isso de uma situação
extraconvencional, na qual a protecção conferida às vítimas não pode ter por base o DIH.
Parece
assim que os critérios para a qualificação do CANI enuncia-dos no n.o 1 do artigo 1. o do segundo Protocolo
são suficientes para excluir as
tensões e os distúrbios internos do campo de aplicação do DIH. Porém, o Protocolo não avança
qualquer definição destas situa-ções que
podem consistir 5 em motins sem propósito concertado, detenções
maciças de pessoas em função dos seus actos ou opiniões, com a agravante de estas acções poderem
ser acompanhadas de maus tratos,
condições desumanas de detenção, alegações de
desa-parecimentos e suspensão das
garantias judiciárias fundamentais, nomeadamente
como consequência de ter sido decretado um estado de
excepção.
Face à
multiplicação das situações de conflitos deste tipo, em que o número de vítimas pode ser muito elevado
e em que as falhas do DIH são
patentes, foi proposta uma declara-ção sobre
as regras humanitárias mínimas.
A
declaração de Turku é uma proposta de carácter
doutrinal 6 , cujo campo de aplicação material
é muito vasto, já que visa as situa-ções em
que, por um lado, o DIH não é apli-cável devido
à inexistência de um conflito
48 Direito
Internacional umanitário
5 Vide
Com.,p.1378 e seguintes. Vide
igualmente Harrof – Tavel (M.): «L
’action du CICR face aux situations de
violence interne »,1993, pp.211-237
(em português: «A acção do CICV
face às situações de violência
interna »).
6
Declaração adoptada por um grupo de
peritos,entre os quais se encontravam
Condorelli,Gasser e Meron
..qualificado
como tal e em que, por outro lado, o Direito Internacional dos
Direitos Humanos já não o é por a situação de emergência ter justificado a suspensão de direitos.
Estas regras seriam assim aplicáveis
a qualquer situação de violência, não podendo ser derrogadas em qualquer circunstância. Trata-se, assim
de retomar os princípios comuns aos
Direitos Humanos e ao DIH, tais como o direito
à dignidade, o direito dos detidos, a proibição de terrorismo, de deslocações forçadas de população,
as garantias jurisdicionais, o acesso
às vítimas, entre outros.
Porém, a
declaração de Turku não possui por enquanto qualquer valor
jurídico e, as únicas garantias possíveis no caso de
existência de tensões e distúrbios
internos são concedidas pelo Direito inter-nacional dos
Direitos Humanos ao qual o Preâmbulo do Protocolo II
se refere expressamente no seu segundo considerando; este direito
pode revelar-se inoperante 7 e o CICV, com base no seu direito
de iniciativa humanitária, convencional ou estatutário, pode
oferecer os seus serviços ao Estado que, em tais circunstâncias,
os deve aceitar.
6.TEMPO DE PAZ
Paradoxalmente,
o DIH tem uma aplicação importante em tempo de paz
8 , expressamente consagrada nos instrumentos jurídicos 9 , e que
diz respeito a três aspectos relevantes na
pre-paração para uma situação de
conflito.
Difusão
A difusão
consiste numa obrigação de natu-reza convencional
que tem por destinatários, tanto as
forças armadas como o conjunto da população
civil 10 .
Esta
obrigação implicanomeadamente que as autoridades militares e civis possuam e conheçam os instrumentos
pertinentes, formem pessoal qualificado com
Campo de
Aplicação 49
7 No caso de
os direitos e liberdades serem
suspensos,em conformidade com
as cláusulas derrogatórias previstas
sobre a matéria (p.e.artigo
4.o do Pacto Internacional sobre
os Direitos Civis e Políticos).
8 Burp
(D.):«L ’application du droit international
humanitaire en temps de paix
»,in:Au service de l ’Humanité,Ed.De
la Chapelle,1996, p.45 e
seguinte (em português: «A
aplicação do Direito Internacional Humanitário
em tempo de paz »).
9 Artigos 2.o
,n.o 1,comum e 1.o §2 PI.
10 Vide capítulo 14 §2
..vista a
facilitar a aplicação dos textos legais e incorporem
conselheiros jurídicos nas forças
armadas a fim de prestar auxílio às chefias mili-tares
11 . Como
complemento da obrigação de difusão, os Estados devem
igualmente prever mecanismos apropriados para assegurar a
criminalização das violações do Direito Humanitário, em
especial das infracções graves,
através da adopção de legislação penal, que deverá
ser objecto de tradução oficial e comunicada aos outros Estados.
Sinalização dos
bens protegidos
Revela-se
naturalmente indispensável que, antes da abertura das
hos-tilidades, as unidades
sanitárias fixas ou móveis sejam sinalizadas através
do emblema e munidas de sistemas de identificação por meio de sinais luminosos ou de rádio 12 . Devem
ser tomadas precauções idênticas
em relação aos bens culturais e às instalações contendo
for-ças perigosas 13 .
Criação de certas
estruturas
Para além
das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha ou do Cres-cente Vermelho,
que se devem preparar 14 para as tarefas específicas que
lhes podem incumbir durante um conflito armado, a prepara-ção para uma situação de conflito justifica a
criação ou o desenvolvimento de um
serviço de protecção civil, a
constituição em período de paz de
escritórios oficiais de informações para
os prisioneiros de guerra e pessoas civis, bem
como de escritórios para a procura de crianças
e de pessoas desaparecidas 15 . Para além
disso, será instituído em cada Estado, um serviço
de sepulturas 16 para o registo das indi-cações relativas
aos enterros e sepulturas, bem como
para a conservação das cinzas.
Finalmente, os
documentos administrativos
50 Direito
Internacional umanitário
11 Vide
Hampson (Fr.):«Combattre dans les
règles:l ’instruction aux forces
armées en matière de Droit humanitaire
»,RICR;1989,pp.117 e seguintes (em
português: «Combater de acordo com
as regras: a instrução às forças
armadas em matéria de Direito
Humanitário »).
12 Artigos 3.o a
13.o ,Anexo 1,PI.
13
Respectivamente artigos 3.o da Convenção
de Haia e 16.o do anexo ao primeiro
Protocolo. 14 Artigo 26.o §2 da C I.
15 Artigos 122.o a
125.o da C III e
136.o a 141.o da C
IV.
16 Artigo 17.o da C
I
..para a
identificação pessoal (bilhetes e chapas de identificação para
os combatentes) e os diversos formulários
relativos aos prisioneiros de guerra
e aos internados civis (ficha de captura ou de internamento, anúncio da morte, certificado de
repatriamento e ficha de corres-pondência) serão
preparados em conformidade com os anexos às qua-tro Convenções
e ao primeiro Protocolo.
O campo de
aplicação material do DIH pode ser esquematizado da seguinte
forma:
À medida que
a situação gerar um aumento das hostilidades, o direito
aplicável torna-se mais protector. Contudo, em contra-partida, o campo de aplicação material do Direito
Humanitário revela-se bastante
paradoxal 17 . Com efeito, quanto mais internacional for
o conflito, menos elevado deve ser o grau de intensidade das
hostilidades para que um direito mais protector – no papel – se aplique; inversamente, quanto menos
internacional for o con-flito, mais
elevado deverá ser o grau de intensidade das hostili-dades (Protocolo II) para que um direito menos
protector se aplique. O paradoxo
consiste igualmente no facto de no âmbito de um
CANI as pessoas poderem beneficiar, por via do artigo 3. o comum,
de uma melhor protecção do que aquela
concedida aquando de tensões e dis
de
Aplicação 51
PAZ GUERRA SITUAÇÂO
DIDP DIH ELEVADA
PROTECÇÃO REDUZIDA
Violências de
Direito Comum
Tensões e
Distúrbios Internos
CANI art.º
3 CANI P
II C II GLN
C I/II/III/IV e P I/II
CAI 17
David (E.),op.cit.,pp.174 e
seguintes
..túrbios
internos, em situações nas quais o Estado em questão decide
suspender os direitos e liberdades 18 . Face
à evolução dos tipos de armamentos, podemos ainda pensar que as condições constitutivas de um conflito
armado, tais como defi-nidas pelo DIH,
se tornarão rapidamente obsoletas, já que o DIH cor-responde a uma concepção muito especializada e
territorializada do acto de
agressão. A situação de confrontação física e a intrusão
ilí-cita num território
estrangeiro, serão futura-mente substituídas
pelas noções de realidade virtual e
de visualização tridimensional que serão
utilizadas para fins de desinformação do inimigo.
Será necessário um dia «desmate-rializar» o
acto de agressão 19 e ter em conta o facto
de as guerras do terceiro milénio não se desenrolarem
forçosamente nos campos de batalha.
18 Nos termos
do artigo 4.o do Pacto Internacional
sobre os Direitos Civis e
Políticos,do artigo 15.o da
Convenção Europeia para a
Protecção dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais ou do
artigo 27.o da Convenção Americana
dos Direitos do Homem.
19 Rabault
(J.P.):«Les armes nouvelles et le
droit »,in:Droit des conflits armés
et défense,Ministère de la Défense,Colloque
des 3 et 4 février 1998,p.158 (em
português: «As armas novas e o
direito »).
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